Sobre o Livro Os Sertões

SIMPÓSIO INTERNACIONAL OS SERTÕES

Ao som de lundus do tempo de Antonio Conselheiro foi encerrado, em Canudos, a 410 Kms de Salvador, o Simpósio Internacional “Os Sertões 1902-2002: permanência e rasuras”, Organizado pela Universidade Estadual da Bahia – Uneb –, o simpósio tem caráter itinerante e já passou por Salvador e Feira de Santana. Segundo cálculos do organizadores, 4 mil pessoas lotaram os hotéis ou alugaram quartos dos moradores para o encerramento do fórum, acontecido na Praça do Povo, ao som da Banda de Pífanos do Bendegó.

O encontro vem reunindo especialistas, pesquisadores, professores e estudantes das áreas de letras, artes e ciências humanas, com a idéia de debater, sob uma perspectiva multidisciplinar, a temática proposta, focalizando algumas linhas de força do texto euclidiano.

A recepção aos visitantes, na sexta-feira, ficou por conta dos vaqueiros que, do lombo de seus cavalos, improvisaram versos em dolentes toadas de aboio. Ao longo do simpósio, dezenas de palestras, amostras fotográficas, encenações e lançamentos de livros e de um filme aconteceram, propondo desde a revisão histórica do massacre até a análise do que permanece igual, desde que o correspondente de guerra do Estado de S. Paulo, Euclides da Cunha, por ali esteve, em 1897.

Houve a inauguração do Jardim Euclideano João de Régis, onde estão plantadas espécies vegetais descritas por Euclides da Cunha em Os Sertões e pela reabertura do Memorial Antônio Conselheiro, espécie de museu de guerra onde o visitante aprecia artefatos bélicos e material arqueológico e humano, encontrado no sítio histórico.

O diretor do Centro de Estudos Euclides da Cunha, Luiz Paulo Neiva explicou que o evento propôs “uma reflexão sobre Os Sertões e sua temática, localizada no ambiente e sua fonte referencial, Canudos”. As homenagens foram dedicadas ao ex-tropeiro e filho de conselheiristas João de Régis, que serviu de fonte aos professores José Calasans, Renato Ferraz e Roberto Ventura, também homenageados.

A história da guerra foi mostrada através de um desfile organizado principalmente pelos professores e com a participação dos alunos e moradores, um desfile bonito, porém os organizadores deveriam ter  limitado a rua para evitar que a população não a ocupasse durante a passagem do desfile.

Já os locais, na noite da festa de encerramento, se dividiram em duas trincheiras: uma parte foi para o show de Sérgio do Forró, na Concha Acústica da Praça do Povo. A outra preferiu uma seresta  (teclado e voz) que tocava numa lanchonete próxima.

 [tribulant_slideshow gallery_id=”5″]

As comemorações

Em 1997 o mundo letrado ritualizou em seminários, congressos, arte e publicações o centenário da Guerra de Canudos. Três anos antes já havia comemorando os cem anos de fundação do Arraial do Belo Monte por Antônio Conselheiro, enquanto programava, para 2002, grandiosos eventos no centenário de publicação de Os sertões.

No século 20, a destruição do povo de Canudos foi exigida, pela imprensa, governantes, intelectuais e a população com os mesmos argumentos econômicos e eleitorais, pânico e histeria coletiva, com que hoje se exige a matança dos miseráveis para a eliminação da barbárie.

Mas cem anos de euclidianismo fizeram brotar intelectuais e especialistas de diferentes áreas disciplinares, que instituíram o tema de Os sertões nos debates acadêmicos e na história oficial do Brasil.

Em 1947, o jornalista Odorico Tavares, acompanhando-se do jovem fotógrafo francês, Pierre Verger, fez a primeira tentativa de entender como sobreviventes da guerra contra Canudos entendiam a tragédia que destruíra seu mundo. E tentava entender ele próprio a presença de cerca de 20 ou 30 deles no novo povoado construído em cima dos escombros. Encontrou histórias terríveis, revividas por testemunhas de um tempo em que o povo sertanejo marchou, lutou, matou, rezou e morreu em defesa da crença num mundo de paz e trabalho, anunciado por missionários católicos e peregrinos que percorriam o Nordeste desde o século 19.

Espalhado o assombro pelo encontro de Pedrão, Ciriaco e outros personagens de Os sertões, estudiosos iniciaram a romaria ao mundo do Conselheiro, numa tentativa de registrar a história como fora entendida pelos ”jagunços fanáticos e sanguinários” de Canudos. Nertan Macedo, Paulo Dantas, Luciano Carneiro, Aberlardo Montenegro e o historiador José Calazans iniciaram uma nova corrente da história.

Euclides da Cunha e uma corrente de estudiosos que o sucederam entenderam o movimento beato como uma manifestação milenarista, daí a necessidade, para aqueles crentes, de uma guerra que precipitasse o fim dessa vida para a entrada no céu. Mas, em 1974, Ataliba Nogueira publicou uma indicação da crença daquele povo na continuidade do mundo. Outro exemplo de descoberta que mudou a história: contradizendo a imagem de louco analfabeto, Antonio Conselheiro escreveu dois livros, de prédicas e de rezas, cuja autoria foi recolhida por Afrânio Peixoto, Calazans e Roberto Ventura, morto em 14 de agosto.

Vida e obra de Euclides renderam muitos filmes

Estamos em 2002, comemorando os cem anos do lançamento de Os sertões e ainda não temos um único filme de longa metragem que possa projetar as muitas idéias do homem que escreveu o livro número 1 do Brasil. Existe apenas um curta- metragem de Humberto Mauro realizado para o MEC, que nos oferece uma boa introdução ao mundo de Euclides.

A TV Globo fez a minissérie Desejo, que não se pode considerar como um trabalho que tenha difundido as idéias do escritor, já que Euclides era um trágico figurante no roteiro que privilegiou a vida amorosa de Ana e Dilermando de Assis.

Glauber Rocha voou, mergulhou, bebeu em Os sertões, criando deuses diabos, Conselheiros, Antônios das Mortes, Coriscos, dragões das maldades, santos guerreiros. A contribuição do pensamento euclidiano também aparece na obra de Nelson Pereira e de outros cineastas que se dedicaram ao cinematográfico faroeste sertanejo, como em Canudos, de Sérgio Rezende; Os 7 sacramentos de Canudos e nos vídeos Paixão e morte nos sertões de Canudos, de Antônio Olavo, e Cidadelas , de Paulo Mussoi e Renato Fagundes. Em matéria de trilha sonora, há o samba enredo Os sertões, de Edeor de Paula, que ganhou o Estandarte de Ouro de 1967, considerado a mais bela tradução e compactação da obra-prima de Euclides.

‘Os sertões’ 100 anos depois

Euclides da Cunha chamou a atenção para os excluídos em obra fundadora da nacionalidade.

João de Régis, conselheirista, foi um dos personagens do livro de Evandro Teixeira, ‘Canudos 100 anos’, discutido na Semana Euclidiana, em São José do Rio Pardo. Foto:Evandro Teixeira

Já antes da publicação de Os sertões, a guerra de Canudos, que à primeira vista nos parece assunto intrinsecamente brasileiro e interiorano, foi evento de mídia não só no Brasil, mas nas Américas, e em toda a Europa, comparável na nossa época com o movimento zapatista em Chiapas. Pois aquele assalto ilegal de tropas legais contra uma pacífica comunidade de vaqueiros e lavradores – sem aviso prévio, sem diálogo, sem chance nenhuma para os assaltados – teve não apenas traços arcaicos e bárbaros como os de todas as guerras, mas foi muito moderno e internacional. O mundo inteiro se aliou ao exército atacante, concedendo ao governo os créditos necessários, mandando a sua mais avançada tecnologia militar, junto a alguns poucos frades e filantropos, e apoiando, através dos grandes jornais do mundo, sua campanha psicológica anti-conselheirista. Diferentemente de Chiapas, no caso de Canudos não havia opinião pública mundial favorável aos atacados, o que selou a sua extinção. A Europa já tinha preparado os paradigmas interpretativos para comportamentos considerados incompreensíveis e desviantes, de coletividades mestiças, rurais e tradicionais, incompatíveis com à modernização – uma continuação da guerra com meios intelectuais.

Apesar de compartilhar os preconceitos mundialmente vigentes contra populações tradicionais, sobretudo as de cor, Euclides, no calor da sua narração apaixonada, passou a admirar aquela comunidade caluniada como retardatária, fanática e criminosa, ”fundamentalista” na terminologia de hoje. Pois o povo de Canudos havia tomado o destino em suas mãos, entrando no palco da história como sujeito político, com um projeto social alternativo, regional, transétnico, procurando obstinadamente resolver os seus problemas materiais e espirituais sem pedir licença nem ao latifúndio, nem ao Estado nem à Igreja. Afinal, a República nada fizera para diminuir a sua miséria e opressão, antes pelo contrário.

O escritor é mais clarividente do que o pensador. O ideólogo republicano e cientificista Euclides da Cunha cada vez mais cede lugar ao patriota e homem cheio de empatia e de compaixão do mesmo nome, que se considera ”narrador sincero”, representando a realidade através de um ”consórcio da ciência e da arte”. Desmonta sarcasticamente os discursos grandiloqüentes, hipócritas e desumanos dos seus colegas da imprensa e do Exército que justificam o colonialismo interno e o massacre dos vencidos com a suposta missão de salvar a República e difundir a civilização. Começa, embora não sem hesitações, a justificar, em seu estilo amargamente irônico, a resistência dos seus ”rudes patrícios”: ”O jagunço […]só podia fazer o que fez – bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas.”

Se o autor enfatiza a dimensão internacional desse conflito, é que lhe atribui caráter paradigmático dentro da história universal, como choque de culturas na expansão secular da civilização, que, tão sedutora quanto violenta, esmaga as sociedades tradicionais que não se deixam facilmente integrar. Diferentemente da África ou da Ásia, no Brasil essa modernidade atropeladora de tudo o que seja profundamente diferente não precisa de intervenções imperialistas, pois tem como cúmplices os políticos, os intelectuais, os militares do litoral aos quais o próprio autor se inclui numa auto-acusação: ”Nós, … armados pela indústria alemã – tivemos na ação um papel singular de mercenários inconscientes.”

Entre as suas visões inovadoras merece destaque a valorização da mestiçagem como processo fundamental para a formação da sociedade sertaneja e brasileira. Na história do pensamento social do país, Euclides, com sua elevação do sertanejo a herói nacional, constitui importante elo de ligação entre o viajante alemão Martius – que no seu tratado Como se deve escrever a história do Brasil, publicado em 1844, reinterpretou a mestiçagem como processo necessário e positivo para a constituição do Brasil como nação – e o sociólogo Gilberto Freyre, cujo ensaio clássico Casa-Grande e senzala comprovou e valorizou o caráter mestiço da população e da cultura no Brasil, um marco contra o racismo ”científico”.

Obra-prima não nasce do nada

Euclides da Cunha chega a Salvador em agosto de 1897, adido à comitiva do marechal Carlos Machado Bittencourt, ministro da Guerra. Vinha comissionado pelo jornal O Estado de S.Paulo, como correspondente especial para cobrir a Guerra de Canudos, iniciada em Uauá, em novembro de 1896. Os rebeldes seguidores de Antônio Conselheiro àquela altura haviam imposto derrota a três brigadas militares. A quarta expedição, chefiada pelo general Artur Oscar de Andrade Guimarães, há mais de três meses esbarrava na tenaz capacidade de resistência dos sertanejos, assustando o país e fazendo-o acreditar que, num fim de mundo da Bahia, tramava-se contra a recém-criada República.

Euclides já tinha vasto conhecimento não só da natureza mas também dos habitantes do sertão. É que, ainda em São Paulo, Teodoro Sampaio (1855-1937) o suprira de pormenorizadas informações sobre o universo por onde, em 1897, viajara na companhia do engenheiro americano William Milnor Roberts. O autor de O Rio de S. Francisco e a Chapada Diamantina (1879-80) fornecera a Euclides notas sobre as terras do sertão pelo qual perambulara e cópia de mapa, na parte referente a Canudos e o vale superior do Vaza-Barris, ainda desconhecido.

Durante a redação de sua obra, Euclides inúmeras vezes recorreu ao amigo Teodoro Sampaio, a quem solicitava esclarecimento e informações sobre pontos nebulosos da história e da geografia. Visitava com assiduidade o geólogo, geógrafo, tupinólogo e historiador, seu principal confidente. Narrava-lhe episódios da luta desigual e que o deixara traumatizado. Depõe Teodoro: ”Foi neste estado de alma que escreveu Os sertões. O escritor másculo que se ia revelar, vinha cheio das mais desencontradas impressões. As cenas daquelas terras devastadas pelas secas periódicas e pela cólera insana dos homens, revelavam-se-lhe de um imprevisto inimaginável e ele como que se sentia com forças para fixá-las na tela de uma obra imperecível. Parecia-lhe isso uma reparação, uma dívida a pagar à memória daquela gente obscura que soube morrer por um ideal.”

Aos domingos, dezenas de laudas debaixo do braço, Euclides ia visitar Teodoro. Lia textos para o mestre que escutava com atenção os reparos.

Teodoro Sampaio foi um dos mais valiosos colaboradores de Euclides da Cunha na fase preparatória de sua obra. Repassou ao discípulo cópias de cartas-régias, roteiros, alvarás, crônicas dos jesuítas, biografias, manuscritos dos tempos coloniais, histórias, lendas, memórias e tradições, compilados de Aires do Casal, Acióli, Pedro Taques, Araújo Porto Alegre, Alexandre Rodrigues Ferreira. E raras referências bibliográficas com as quais Euclides poderia pesquisar e cotejar: institutos, academias, bibliotecas, arquivos do Rio e da Bahia, longa e metodicamente selecionadas.

Édson Carneiro considerou Os sertões ”a consciência acusadora do Brasil” e Adelino Brandão não teme em reputá-lo ”obra escrita a dois”, Sylvio Rabello reflete: ”Vê-se daí, que sem a colaboração de Teodoro Sampaio – as suas informações pessoais, as suas pesquisas antigas e bem orientadas – teria Euclides demorado mais do que demorou, na elaboração de Os sertões. Teria de contrapor si mesmo aqueles elementos que um especialista da categoria de Teodoro Sampaio arduamente coligira em muito anos de investigação.” 

Por que ler um clássico?

‘Os sertões’ ainda é o livro que mais bem exprime os dilemas nacionais.

O conselheirista Antônio de Isabel, 110 anos, vive hoje na cidade de Euclides da Cunha.

Uma enquete realizada com 15 dos mais consagrados intelectuais do país elegeu, em 1994, Os sertões, de Euclides da Cunha, como o ”livro número um” do Brasil. Os entrevistados foram unânimes em afirmar: trata-se da obra mais representativa da cultura brasileira de todas as épocas. A obra-prima de Euclides da Cunha conta com mais de 30 edições em português que se sucederam no tempo desde a primeira, lançada no Rio de Janeiro em 2 de dezembro de 1902, pela Editora Laemmert. Foi também traduzida para diversos idiomas, até mesmo para o chinês, o dinamarquês, o alemão e o holandês. Hoje adquiriu aura de livro sagrado, ”bíblia da nacionalidade”.

Qual a razão deste sucesso? Por que um livro escrito há cem anos mantém-se vivo e atual? Por que ler Os sertões hoje?

A profecia de Roquette-Pinto, de que Os sertões seria no futuro o grande livro nacional, o que Dom Quixote é para a Espanha ou Os Lusíadas para Portugal, parece ter se realizado.

Ao ser classificado como um ”clássico brasileiro”, Os sertões consolidou-se como um livro associado à construção da identidade nacional, uma espécie de livro monumento. Best-seller de longa duração, tem sido continuamente revisitado no curso destes cem anos. Numa sociedade em que as informações, sempre novas, justapõem-se umas às outras, formando camadas arqueológicas que pouco se comunicam entre si, é surpreendente que um livro sobreviva ao tempo como metáfora do país. E por que exatamente Os sertões?

A importância deste livro reside em sua capacidade de expressar importantes dilemas nacionais, que extrapolam a própria narrativa da tragédia de Canudos. Benedict Anderson já chamava a atenção para a necessidade de as nações modernas se imaginarem enquanto comunidades, organizando para si narrativas capazes de instaurar a idéia de nação.

Euclides da Cunha revela-se um narrador sincero e interessado, sobretudo pelo envolvimento com os ideais de implantação da República no Brasil. ”Vivemos em pleno colonato espiritual. Pensamos demasiadamente em francês, inglês, ou mesmo em português. Quero pensar brasileiramente, quero viver brasileiramente”, dizia. Vislumbrando estas utopias, ele se lança em direção a Canudos para assistir, em 1897, ao fim da guerra contra os adeptos de Antônio Conselheiro.

Até então, Euclides não era um escritor. Formado na Escola Militar, era um cientista de idéias positivistas. Dividia-se entre a engenharia e os de artigos de jornais. Foi no jornal O Estado de S.Paulo que estampou seu primeiro artigo sobre Canudos, ”A nossa Vendéia”, em que comparava a reação dos conselheristas com a dos camponeses vendeanos que se insubordinaram contra a Revolução Francesa. Entretanto, a viagem a Canudos provoca violenta transformação em seu espírito.

É a partir desta metamorfose que a tragédia de Canudos se configura para o futuro escritor como expressão dos dilemas nacionais. Como num ritual de passagem, o militar se distancia de seu mundo de origem e se abre para outro. O engenheiro racionalista desloca seu ângulo de leitura da ”Nossa Vendéia” para Os sertões, de um evento localizado e presumivelmente contra-revolucionário para uma metáfora do Brasil. E se indaga: seria este um povo incapaz de atingir a civilização, como enunciava Nina Rodrigues e tantos outros na esteira das teorias racistas? Já não acredita nas teorias que parecem não dar conta do que experimenta face à beleza do Arraial e ao horror da guerra de Canudos.

Mas como construir a narrativa complexa sobre o que havia presenciado como repórter? Foram necessários três anos de estudos, praticamente recluso numa cabana de zinco e sarrafos à beira do rio Pardo, no interior de São Paulo, nos intervalos de suas tarefas como engenheiro de obras públicas, para que se produzisse o livro que ele chamava de ”vingador”.

Mais cinco anos se passaram entre o fim da guerra de Canudos e o lançamento do livro, em dezembro de 1902, custeado pelo próprio autor. Mas foi surpreendido pela crítica consagradora de José Veríssimo. Muitos escritores se dedicaram a refletir sobre o enigma do livro. Para José Veríssimo e Araripe Júnior, seu valor estaria na confluência entre ciência e arte. Para Sílvio Romero, na oposição entre os sertões, que expressavam o ”Brasil social”, e o litoral, que equivalia ao ”Brasil da politicagem”. Antonio Candido qualificou o livro como um divisor de águas entre a literatura e uma tradição ensaística de longa vida no Brasil. Outros autores têm enfatizado o caráter polissêmico da obra, capaz de ser apropriada por diferentes campos do conhecimento. Para Roberto Ventura, o livro toca, pela emoção, numa memória viva. Certamente um bom motivo para ler Os sertões nos dias de hoje.

O livro Os Sertões ainda é um dos mais lidos da literatura brasileira.
Os vários ângulos de uma obra-prima

Um roteiro sobre o euclidianismo

Engana-se quem pensa que sobre Os Sertões tudo já foi dito. Para se ter uma idéia da quantidade da produção em torno de Euclides da Cunha e sua obra-prima, existiam até agora três obras de referência expressivas. A primeira data de 1931 e trata do levantamento, feito por Francisco Venâncio Filho, de algumas centenas de obras com estudo biobibliográfico pioneiro sobre o escritor.

A segunda, editada em 1971, pelo Instituto Nacional do Livro e realizada por Irene Monteiro Reis, reúne uma importante bibliografia com cerca de 3 mil títulos. A terceira, editada em 1995 pela Fundação Biblioteca Nacional e a Editora da Unicamp, fruto do trabalho de pesquisa de Márcia Japor de Oliveira Garcia e Vera Maria Furstenau, reúne mais de 4.700 referências de e sobre Euclides da Cunha disponíveis no acervo da Biblioteca Nacional.

Euclides da Cunha: bibliografia comentada, que acaba de ser lançado (Literarte, 755 páginas, R$ 65) por ocasião do centenário de Os sertões, arrola 9.372 verbetes, sendo 1.330 referentes aos trabalhos de Euclides da Cunha publicados entre os anos de 1884 e 2000. Os verbetes restantes referem-se à extensa produção sobre o autor no Brasil e no exterior. Uma das novidades é que esta bibliografia contempla obras em diferentes suportes, abrangendo textos impressos, filmografia, dramaturgia, internet, novelas de televisão, etc.

Curiosamente, grande parte dos estudiosos de Os sertões e de Euclides da Cunha não estão apenas nos grandes centros acadêmicos. O clássico e seu autor têm inspirado a admiração nas mais diferentes áreas. É o caso de Manif Zacharias, autor de A lexicologia de Os sertões (Garapuvu, 991 páginas, R$ 45). Médico, sua relação com Euclides teve início ainda na juventude, quando leu o livro pela primeira vez. As dificuldades em decifrar o vocabulário euclidiano nas muitas leituras que, ao longo dos anos, fez do livro o encorajaram a realizar uma obra que tornasse mais compreensível ”a terminologia técnica profusamente empregada”. O livro foi o grande vencedor do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, no valor de R$ 75 mil, da Academia Brasileira de Letras.

A reconstrução de uma ponte na pequena cidade de São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, tem sido considerada, ao lado de Os sertões, um dos grandes feitos do doublé de engenheiro de obras públicas e escritor Euclides da Cunha. Poucos conhecem outras passagens do seu trabalho como engenheiro. O outro Euclides (Núcleo de Pesquisa Regional, 320 páginas, R$ 20), organizado por José Luiz Pasin, vem preencher esta lacuna.  

O livro de Carmen Trovatto, A tradição euclidiana: uma ponte entre a história e a memória (Arte e Ciência, 231 páginas, R$35), discorre sobre o fenômeno do euclidianismo, o culto e a admiração ao escritor na cidade que já se tornou sua meca, São José do Rio Pardo, em São Paulo. Para lá todo o ano dirigem-se caravanas de escritores, pesquisadores e estudantes de vários pontos do país com o objetivo de reverenciar o escritor e estudar sua obra.

Aprendemos com o livro de Carmen mais uma vez que a construção da memória exige decisão, dedicação, vontade política. Após a invenção do local sagrado de Euclides (que mais tarde seria tombado como Monumento Nacional pelo então Serviço do Patrimônio Histórico Nacional) e o início das romarias comemorativas no aniversário de morte do escritor, os primeiros euclidianos buscaram a adesão da população de São José do Rio Pardo. Um longo projeto de unir a comemoração à vida da cidade foi desenvolvido: a criação do desfile de abertura com a participação dos rio-pardenses, a transformação do dia da morte de Euclides em feriado municipal, a transformação em museu e sede do movimento euclidiano da casa, onde o escritor morou com a família, em museu são alguns exemplos do esforço empreendido pelos condutores do movimento.

Finalizando a leitura, sentimos a sensação de haver descoberto um pequeno tesouro. A festa euclidiana é não apenas um ”lugar de memória” como tantos outros, ela vai além, propiciando o que Reinhart Koselleck chamou de ”espaço de experiências”, onde o que importa não é a mera transmissão de informações ou conhecimentos, mas o encontro com narrativas exemplares.