Entre ‘causos’ e histórias, Mercado Modelo resiste ao abandono.

A partir de relatos pessoais, permissionários contam trajetória do local.
Comerciantes clamam por mais cuidado e pedem mais atenção ao espaço.

Danutta Rodrigues Do G1 BA

Além do artesanato, primeiro andar do Mercado Modelo possui dois tradicionais restaurantes de Salvador (Foto: Egi Santana/ G1)
Além do artesanato, primeiro andar do Mercado Modelo possui dois tradicionais restaurantes de Salvador (Foto: Egi Santana/ G1)

À frente, o Elevador Lacerda, aos fundos, a Baía de Todos-os-Santos. Rodeado por cartões postais de Salvador, o Mercado Modelo reúne “causos” e histórias que costuram a trajetória do espaço histórico e símbolo da cultura baiana. Ao som de berimbaus e atabaques, que se misturam ao barulho urbano da região da Cidade Baixa, onde fica situado, o Mercado Modelo ultrapassa a alvenaria de pedra com que foi construído e compõe a vida de cada comerciante como um personagem.

Prédio histórico fica na Praça Visconde de Cayru, na Cidade Baixa (Foto: Egi Santana/ G1)
Prédio histórico fica na Praça Visconde de Cayru, na Cidade Baixa (Foto: Egi Santana/ G1)

“Significa tudo para mim. Aqui eu eduquei meus filhos, tenho meu teto, meu sustento, tudo que eu tenho eu devo a ele. Eu agradeço a Deus por ter o Mercado Modelo, mas tenho uma história triste aqui”, revela emocionada a permissionária Egídia de Morais, 73 anos, mais conhecida como “Zizi das Rendas”.

Há 48 anos trabalhando no espaço, a comerciante convive com uma história trágica, mas que, atualmente, deixa espaço na memória para as boas lembranças.

“Eu perdi meu marido aqui. Foi o único homem que conheci. Um ladrão roubou um relógio na Praça da Sé e desceu para o Mercado Modelo. Meu marido estava sentado e a polícia veio atrás do bandido e, quando atirou, em vez de pegar no ladrão, pegou no meu marido. Muito triste isso, mas tive que tocar o meu barco para frente”, conta. Com quatro filhos, seis netos e dois bisnetos, Zizi das Rendas trabalha com confecções e admite que não consegue ficar três dias longe do Mercado. “Gosto muito daqui e parece que gostam de mim”.

Egídia Ribeiro de Morais, 73 anos, permissionária de uma loja de confecções, conhecida como Zizi das Rendas (Foto: Egi Santana/ G1)
Egídia Ribeiro de Morais, 73 anos, permissionária de uma loja de confecções, conhecida como Zizi das Rendas (Foto: Egi Santana/ G1)

Ao percorrer pelos corredores do prédio histórico da antiga casa de alfândega, o andar cadenciado e o sorriso discreto de Josenilson dos Santos, 60, se destaca entre os 263 permissionários e turistas que diariamente frequentam o espaço. Supervisor do Mercado Modelo há 29 anos e avesso a fotos, Seu Zé Nilson trabalhou na reconstrução do espaço após o incêndio de 1984 e conhece cada canto dos 8.400 metros quadrados do prédio histórico. Ele lamenta o abandono e a falta de estrutura do local.

“Há mais de dez anos está abandonado. Não sei o que aconteceu, mas está nesse estado. Os comerciantes perdem muito com esse abandono. O turista vem e não fica muito tempo aqui, encontra tudo desse jeito”, conta.

Seu Zé Nilson também revela a pouca frequência do soteropolitano. “Não sei se falta divulgação ou se tem aquela fama de que aqui vende caro, aqui só é para turista. Mas aqui não é só para turista, é para todo mundo, tem coisa barata também. O Mercado está decadente”, afirma.

Mercado Modelo, em Salvador, fica na região da Cidade Baixa (Foto: Egi Santana/ G1)
Mercado Modelo, em Salvador, fica na região da Cidade Baixa (Foto: Egi Santana/ G1)

Apesar da frustração com o abandono, Seu Zé Nilson conta que criou os filhos com o ofício que desempenha no espaço. “O que eu tenho hoje eu agradeço ao Mercado, através do meu salário. Isso aqui é muito bonito. Já foi filmado, tiveram muitas rodas de capoeira”, relata. Segundo ele, a história que mais chamou atenção durante todos esses anos foi a suposta comercialização de escravos que teria ocorrido no subsolo do Mercado Modelo, versão contestada por historiadores. “Um italiano chegou aqui uma vez e pediu para descer. Lá ele me disse que o avô dele comprava e negociava escravos ali. Mas isso foi o que ele falou, não tem registrado em lugar nenhum. Eu não acredito nessa história, mas acho que o prédio foi construído pelos escravos”, relatou. [No vídeo ao lado, veja imagens do subsolo, desativado há mais de dez anos]

A lenda figura no imaginário do soteropolitano e mantém o ar misterioso e sombrio do subsolo do Mercado Modelo. Para a historiadora e coordenadora do curso de História da Bahia promovido pelo IGHB (Instituto Geográfico e Histórico da Bahia), Antonietta Nunes, a comercialização de escravos no subsolo do espaço é folclore.

“Escravo era uma mercadoria e você tinha que pagar imposto por ela. Você entrava na alfândega normal e levava qualquer mercadoria. Na alfândega, que era um mercado oficial, o escravo passava por lá, mas era vendido em outro lugar. A história de que existiam escravos é lenda, não tem lógica”, afirma.

Imagem de Nossa Senhora da Conceição foi colocada pelos comerciantes para abençoar o espaço (Foto: Egi Santana/ G1)
Imagem de Nossa Senhora da Conceição foi colocada pelos comerciantes para abençoar o espaço (Foto: Egi Santana/ G1)

Estrutura
Segundo o arquiteto Paulo Ormindo, que participou do projeto de restauração do Mercado Modelo após um dos incêndios que marcaram a história do espaço, o edifício é uma antiga alfândega, neoclássica, projetada e construída pelo arquiteto polonês André Przewpdoswski. O início da construção foi em 1843 e ela foi inaugurada por D. Pedro II, ainda inacabada, em 1861. Como uma alfândega, todas as janelas eram protegidas por pesadas grades de ferro fundido para evitar roubos.

O subsolo servia, originalmente, para guardar materiais refratários ao calor, como vinhos, munições, entre outros. Porém, com o aterro, o lençol freático subiu e o subsolo ficou alagado, sem condição de uso, e por isso passou a ser aberto para visitação. “O seu teto é em abobadas de arestas para suportar as grandes cargas do pavimento térreo. A solução é mais técnica do que de inspiração estilística, embora abobadas e arcos tenham sido muito utilizados pelo neoclassicismo”, conta.

Com ar sombrio e misterioso, subsolo tem o chão coberto pela água do mar (Foto: Egi Santana/ G1)
Com ar sombrio e misterioso, subsolo tem o chão coberto pela água do mar (Foto: Egi Santana/ G1)

Incêndios
Entre tantas histórias, os grandes incêndios marcaram a vida dos comerciantes do espaço. Antes de passar a funcionar na antiga casa de alfândega, o Mercado Modelo era situado onde atualmente fica o monumento “Saveiros”, do artista plástico Mário Cravo.

Escultura de Mário Cravo fica situada no antigo Mercado Modelo, que pegou fogo (Foto: Egi Santana/G1)
Escultura de Mário Cravo fica situada no antigo Mercado Modelo(Foto: Egi Santana/G1)

Nelson Tupiniquim, 54, comerciante ilustre e eleito presidente da Associação dos Comerciantes do Merdado Modelo (ASCOMM), relembrou os momentos de dificuldade e união dos permissionários no período.

“Os grandes incêndios foram ‘acidentais’. O antigo atrapalhava a construção da Avenida Contorno. Esse aqui [onde atualmente é localizado], a gente sabe que queimou por causa da quantidade de madeira que tinha. As escadas foram substituídas por estruturas de ferro”, conta.

Os incêndios ocorreram nos anos de 1922, 1943 e 1969, no antigo prédio onde atualmente fica o monumento de Mário Cravo. O último incêndio foi no ano de 1984, já no prédio da casa de alfândega, quando os comerciantes perderam tudo.

Seu Nelson Tupiniquim é um dos permissionários que tem mais tempo no Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/ G1)
Seu Nelson Tupiniquim é um dos permissionários que tem mais tempo no Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/ G1)

Assim como Nelson Tupiniquim e Zizi das Rendas, Valter dos Santos, conhecido como “Gagau”, é permissionário no Mercado Modelo há 45 anos. Aos 13 anos, começou a trabalhar com o pai, que comercializava farinha, ainda no antigo prédio. “De pai para filho”, como o próprio Gagau define, após a mudança para a casa da alfândega, ele continou com o negócio e passou a vender produtos de couro e, atualmente, comercializa imagens.

O ofício é motivo de orgulho. “Eu me dedico à minha profissão, sempre trabalhando e atendendo bem. Tenho muitos amigos aqui e fora daqui”. Apesar de considerar o movimento de turistas mais forte, Gagau garante que o baiano também tem frequentado o Mercado Modelo. Otimista, ele conta que a busca por produtos diferentes e também pela gastronomia diversificada do espaço atrai os moradores da “terra”. “Eles [os baianos] vêm passear, então é muito bonito. Aqui é nosso”, defende.

Seu Valter dos Santos, o Gagau, comercializa produtos de couro há mais de 30 anos no Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/ G1)
Seu Valter dos Santos, o Gagau, comercializa produtos de couro há mais de 30 anos no Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/ G1)

Gastronomia
Camafeu de Oxóssi e Maria de São Pedro. Esses são os dois tradicionais restaurantes que habitam no primeiro andar do Mercado Modelo. Com a culinária típica e muito dendê, ambos são situados lado a lado e têm uma vista privilegiada para a Baía de Todos-os-Santos. Sempre no mesmo lugar há 35 anos, o português Rui de Oliveira Mendes, 90, é um dos sócios do Camafeu de Oxóssi, restaurante que leva o nome de uma das figuras mais emblemáticas da história de Salvador e do Mercado Modelo.

Além do artesanato, primeiro andar do Mercado Modelo possui dois tradicionais restaurantes de Salvador (Foto: Egi Santana/ G1)
Além do artesanato, primeiro andar do Mercado Modelo possui dois tradicionais restaurantes de Salvador (Foto: Egi Santana/ G1)

Seu Rui, como é chamado por funcionários e colegas, já circulou pelo mundo como degustador de café até desembarcar na capital baiana.

Ao conhecer Ápio Patrocínio da Conceição, o Camafeu de Oxóssi, ex-presidente do Afoxé Filhos de Gandhi, um dos blocos tradicionais de Salvador, se associou e passou a gerenciar o restaurante.

“Depois da minha chegada, há 35 anos, já aconteceram muitas coisas boas aqui. Quando eu vim, isso aqui era só com mesas e cadeiras. Eu pensei: ‘um lugar tão bonito quanto esse aqui e só com mesas e cadeiras?’ Como eu gosto muito de música, mandei fazer o palco. O pessoal ficou logo todo intrigado perguntando quem era que tinha mandado fazer. O palco foi um sucesso”, conta orgulhoso.

Entre um café e outro, o português, casado há 58 anos, relembrou as histórias do Mercado Modelo e revelou curiosidades. “Neste palco, você nem sonha quem tocou aqui primeiro. Daniela Mercury. Ela ainda nem era conhecida, mas tocou aqui. E uma outra banda altamente conhecida. Asa de Águia tocou também. Fora que tivemos personalidades do teatro, da literatura”, revela.

Rui Mendes, um dos sócios do restaurante Camafeu de Oxóssi, está no Mercado Modelo há mais de 30 anos (Foto: Egi Santana/ G1)
Rui Mendes, um dos sócios do restaurante Camafeu de Oxóssi, está no Mercado Modelo há mais de 30 anos (Foto: Egi Santana/ G1)

Ao lado do Camafeu de Oxóssi, outro tradicional restaurante da história de Salvador: Maria de São Pedro. O nome do estabelecimento também carrega o peso de uma ilustre personalidade baiana. Cozinheira conhecida na cidade, Maria de São Pedro nasceu em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, e começou a carreira com uma quitanda na ladeira da Barroquinha.

Vista do restaurante Maria de São Pedro, no Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/ G1)
Vista do restaurante Maria de São Pedro, no Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/ G1)

Depois, passou para Feira da Sete, na Cidade Baixa, e montou uma barraca de comidas com ajuda de um freguês em um mercado popular em frente à feira de Água de Meninos, atual feira de São Joaquim. Esse seria o primeiro restaurante de comidas típicas da Bahia em Salvador.

Já em 1942, Maria de São Pedro, com auxílio do mesmo freguês, abriu o estabelecimento no antigo Mercado Modelo e, após o incêndio de 1969, passou a ocupar a parte superior da casa de alfândega. A culinária da baiana de Santo Amaro foi provada por personalidades nacionais e internacionais como Dorival Caymmi, Jean Paul Sartre, Orson Welles, Pablo Neruda, Pierre Verger e Jorge Amado, que ainda dedicou um poema em homenagem à baiana.

Térreo do Mercado Modelo também possui diversas cantinas e lanchonetes, além da roda de capoeira (Foto: Egi Santana/ G1)
Térreo do Mercado Modelo também possui diversas cantinas e lanchonetes, além da roda de capoeira (Foto: Egi Santana/ G1)

Além dos restaurantes tradicionais, existem opções mais modestas e tão saborosas quanto o Maria de São Pedro e Camafeu de Oxóssi. As cantinas e lanchonetes que funcionam no térreo do Mercado Modelo são frequentadas diariamente por baianos e turistas. Com preços mais baratos e opções de pratos comerciais, executivos e também com muito dendê, não há como deixar de provar a culinária oferecida em um dos locais mais charmosos e aconchegantes de Salvador.

Apesar da queixa de comerciantes a respeito da falta de infraestrutura e fiscalização do espaço, deixar de visitar um dos mais conhecidos patrimônios históricos de Salvador pode ser considerado o oitavo pecado capital. “O Mercado Modelo é um resumo da cultura da Bahia, da origem do Brasil, porque tudo começou na Bahia. Precisa um pouco mais de apoio, de visão cultural da própria gestão pública e do povo brasileiro em geral para valorizar”, defende o comerciante Nelson Tupiniquim. Já foi ao Mercado Modelo? Então, vá.

Artista plástico desenha rosto de visitante do Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/G1)
Artista plástico desenha rosto de visitante do Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/G1)