Entre ‘causos’ e histórias, Mercado Modelo resiste ao abandono.
A partir de relatos pessoais, permissionários contam trajetória do local.
Comerciantes clamam por mais cuidado e pedem mais atenção ao espaço.
Danutta Rodrigues Do G1 BA
![Além do artesanato, primeiro andar do Mercado Modelo possui dois tradicionais restaurantes de Salvador (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/4Q358mNu6LBS7DjeZvcEMw85mUM=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/11/mercado_modelo_05.jpg)
À frente, o Elevador Lacerda, aos fundos, a Baía de Todos-os-Santos. Rodeado por cartões postais de Salvador, o Mercado Modelo reúne “causos” e histórias que costuram a trajetória do espaço histórico e símbolo da cultura baiana. Ao som de berimbaus e atabaques, que se misturam ao barulho urbano da região da Cidade Baixa, onde fica situado, o Mercado Modelo ultrapassa a alvenaria de pedra com que foi construído e compõe a vida de cada comerciante como um personagem.
![Prédio histórico fica na Praça Visconde de Cayru, na Cidade Baixa (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/JPhNCLsxmo-x3GLmPRXRaJA8M7Y=/300x225/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/11/mercado_modelo_62.jpg)
“Significa tudo para mim. Aqui eu eduquei meus filhos, tenho meu teto, meu sustento, tudo que eu tenho eu devo a ele. Eu agradeço a Deus por ter o Mercado Modelo, mas tenho uma história triste aqui”, revela emocionada a permissionária Egídia de Morais, 73 anos, mais conhecida como “Zizi das Rendas”.
Há 48 anos trabalhando no espaço, a comerciante convive com uma história trágica, mas que, atualmente, deixa espaço na memória para as boas lembranças.
“Eu perdi meu marido aqui. Foi o único homem que conheci. Um ladrão roubou um relógio na Praça da Sé e desceu para o Mercado Modelo. Meu marido estava sentado e a polícia veio atrás do bandido e, quando atirou, em vez de pegar no ladrão, pegou no meu marido. Muito triste isso, mas tive que tocar o meu barco para frente”, conta. Com quatro filhos, seis netos e dois bisnetos, Zizi das Rendas trabalha com confecções e admite que não consegue ficar três dias longe do Mercado. “Gosto muito daqui e parece que gostam de mim”.
![Egídia Ribeiro de Morais, 73 anos, permissionária de uma loja de confecções, conhecida como Zizi das Rendas (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/Btl6PR1LGpX2ysVoy_O_FId2Ya4=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/11/mercado_modelo_71.jpg)
Ao percorrer pelos corredores do prédio histórico da antiga casa de alfândega, o andar cadenciado e o sorriso discreto de Josenilson dos Santos, 60, se destaca entre os 263 permissionários e turistas que diariamente frequentam o espaço. Supervisor do Mercado Modelo há 29 anos e avesso a fotos, Seu Zé Nilson trabalhou na reconstrução do espaço após o incêndio de 1984 e conhece cada canto dos 8.400 metros quadrados do prédio histórico. Ele lamenta o abandono e a falta de estrutura do local.
“Há mais de dez anos está abandonado. Não sei o que aconteceu, mas está nesse estado. Os comerciantes perdem muito com esse abandono. O turista vem e não fica muito tempo aqui, encontra tudo desse jeito”, conta.
Seu Zé Nilson também revela a pouca frequência do soteropolitano. “Não sei se falta divulgação ou se tem aquela fama de que aqui vende caro, aqui só é para turista. Mas aqui não é só para turista, é para todo mundo, tem coisa barata também. O Mercado está decadente”, afirma.
![Mercado Modelo, em Salvador, fica na região da Cidade Baixa (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/QpIFq2sjdtFCZO5JP7bkdBdLe1w=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/11/mercado_modelo_01.jpg)
Apesar da frustração com o abandono, Seu Zé Nilson conta que criou os filhos com o ofício que desempenha no espaço. “O que eu tenho hoje eu agradeço ao Mercado, através do meu salário. Isso aqui é muito bonito. Já foi filmado, tiveram muitas rodas de capoeira”, relata. Segundo ele, a história que mais chamou atenção durante todos esses anos foi a suposta comercialização de escravos que teria ocorrido no subsolo do Mercado Modelo, versão contestada por historiadores. “Um italiano chegou aqui uma vez e pediu para descer. Lá ele me disse que o avô dele comprava e negociava escravos ali. Mas isso foi o que ele falou, não tem registrado em lugar nenhum. Eu não acredito nessa história, mas acho que o prédio foi construído pelos escravos”, relatou. [No vídeo ao lado, veja imagens do subsolo, desativado há mais de dez anos]
A lenda figura no imaginário do soteropolitano e mantém o ar misterioso e sombrio do subsolo do Mercado Modelo. Para a historiadora e coordenadora do curso de História da Bahia promovido pelo IGHB (Instituto Geográfico e Histórico da Bahia), Antonietta Nunes, a comercialização de escravos no subsolo do espaço é folclore.
“Escravo era uma mercadoria e você tinha que pagar imposto por ela. Você entrava na alfândega normal e levava qualquer mercadoria. Na alfândega, que era um mercado oficial, o escravo passava por lá, mas era vendido em outro lugar. A história de que existiam escravos é lenda, não tem lógica”, afirma.
![Imagem de Nossa Senhora da Conceição foi colocada pelos comerciantes para abençoar o espaço (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/jHomMUwu1dHU-bokcKdbTaNlgZ8=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/11/mercado_modelo_25.jpg)
Estrutura
Segundo o arquiteto Paulo Ormindo, que participou do projeto de restauração do Mercado Modelo após um dos incêndios que marcaram a história do espaço, o edifício é uma antiga alfândega, neoclássica, projetada e construída pelo arquiteto polonês André Przewpdoswski. O início da construção foi em 1843 e ela foi inaugurada por D. Pedro II, ainda inacabada, em 1861. Como uma alfândega, todas as janelas eram protegidas por pesadas grades de ferro fundido para evitar roubos.
O subsolo servia, originalmente, para guardar materiais refratários ao calor, como vinhos, munições, entre outros. Porém, com o aterro, o lençol freático subiu e o subsolo ficou alagado, sem condição de uso, e por isso passou a ser aberto para visitação. “O seu teto é em abobadas de arestas para suportar as grandes cargas do pavimento térreo. A solução é mais técnica do que de inspiração estilística, embora abobadas e arcos tenham sido muito utilizados pelo neoclassicismo”, conta.
![Com ar sombrio e misterioso, subsolo tem o chão coberto pela água do mar (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/AZeQGu-uFu54g_ww2-h0t4sJQ6o=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/11/mercado_modelo_23.jpg)
Incêndios
Entre tantas histórias, os grandes incêndios marcaram a vida dos comerciantes do espaço. Antes de passar a funcionar na antiga casa de alfândega, o Mercado Modelo era situado onde atualmente fica o monumento “Saveiros”, do artista plástico Mário Cravo.
![Escultura de Mário Cravo fica situada no antigo Mercado Modelo, que pegou fogo (Foto: Egi Santana/G1)](http://s2.glbimg.com/yzeBW33K7oetFSKqx8wNsnAEVHs=/300x225/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/15/mm---78.jpg)
Nelson Tupiniquim, 54, comerciante ilustre e eleito presidente da Associação dos Comerciantes do Merdado Modelo (ASCOMM), relembrou os momentos de dificuldade e união dos permissionários no período.
“Os grandes incêndios foram ‘acidentais’. O antigo atrapalhava a construção da Avenida Contorno. Esse aqui [onde atualmente é localizado], a gente sabe que queimou por causa da quantidade de madeira que tinha. As escadas foram substituídas por estruturas de ferro”, conta.
Os incêndios ocorreram nos anos de 1922, 1943 e 1969, no antigo prédio onde atualmente fica o monumento de Mário Cravo. O último incêndio foi no ano de 1984, já no prédio da casa de alfândega, quando os comerciantes perderam tudo.
![Seu Nelson Tupiniquim é um dos permissionários que tem mais tempo no Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/tqmNp53JDVWS-GXTaEbuzEaPwgY=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/11/mercado_modelo_18.jpg)
Assim como Nelson Tupiniquim e Zizi das Rendas, Valter dos Santos, conhecido como “Gagau”, é permissionário no Mercado Modelo há 45 anos. Aos 13 anos, começou a trabalhar com o pai, que comercializava farinha, ainda no antigo prédio. “De pai para filho”, como o próprio Gagau define, após a mudança para a casa da alfândega, ele continou com o negócio e passou a vender produtos de couro e, atualmente, comercializa imagens.
O ofício é motivo de orgulho. “Eu me dedico à minha profissão, sempre trabalhando e atendendo bem. Tenho muitos amigos aqui e fora daqui”. Apesar de considerar o movimento de turistas mais forte, Gagau garante que o baiano também tem frequentado o Mercado Modelo. Otimista, ele conta que a busca por produtos diferentes e também pela gastronomia diversificada do espaço atrai os moradores da “terra”. “Eles [os baianos] vêm passear, então é muito bonito. Aqui é nosso”, defende.
![Seu Valter dos Santos, o Gagau, comercializa produtos de couro há mais de 30 anos no Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/64xSIhcNoW_QZUvkKke51-A3JHI=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/11/mercado_modelo_70.jpg)
Gastronomia
Camafeu de Oxóssi e Maria de São Pedro. Esses são os dois tradicionais restaurantes que habitam no primeiro andar do Mercado Modelo. Com a culinária típica e muito dendê, ambos são situados lado a lado e têm uma vista privilegiada para a Baía de Todos-os-Santos. Sempre no mesmo lugar há 35 anos, o português Rui de Oliveira Mendes, 90, é um dos sócios do Camafeu de Oxóssi, restaurante que leva o nome de uma das figuras mais emblemáticas da história de Salvador e do Mercado Modelo.
![Além do artesanato, primeiro andar do Mercado Modelo possui dois tradicionais restaurantes de Salvador (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/bDO5AeVUkPwYJFf1S4WyDdV9X0U=/300x225/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/11/mercado_modelo_05.jpg)
Seu Rui, como é chamado por funcionários e colegas, já circulou pelo mundo como degustador de café até desembarcar na capital baiana.
Ao conhecer Ápio Patrocínio da Conceição, o Camafeu de Oxóssi, ex-presidente do Afoxé Filhos de Gandhi, um dos blocos tradicionais de Salvador, se associou e passou a gerenciar o restaurante.
“Depois da minha chegada, há 35 anos, já aconteceram muitas coisas boas aqui. Quando eu vim, isso aqui era só com mesas e cadeiras. Eu pensei: ‘um lugar tão bonito quanto esse aqui e só com mesas e cadeiras?’ Como eu gosto muito de música, mandei fazer o palco. O pessoal ficou logo todo intrigado perguntando quem era que tinha mandado fazer. O palco foi um sucesso”, conta orgulhoso.
Entre um café e outro, o português, casado há 58 anos, relembrou as histórias do Mercado Modelo e revelou curiosidades. “Neste palco, você nem sonha quem tocou aqui primeiro. Daniela Mercury. Ela ainda nem era conhecida, mas tocou aqui. E uma outra banda altamente conhecida. Asa de Águia tocou também. Fora que tivemos personalidades do teatro, da literatura”, revela.
![Rui Mendes, um dos sócios do restaurante Camafeu de Oxóssi, está no Mercado Modelo há mais de 30 anos (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/e1FJKfUgfgW_YmQqnEhWcWC8qJ0=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/11/mercado_modelo_04.jpg)
Ao lado do Camafeu de Oxóssi, outro tradicional restaurante da história de Salvador: Maria de São Pedro. O nome do estabelecimento também carrega o peso de uma ilustre personalidade baiana. Cozinheira conhecida na cidade, Maria de São Pedro nasceu em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, e começou a carreira com uma quitanda na ladeira da Barroquinha.
![Vista do restaurante Maria de São Pedro, no Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/TzpVJUFSOalvE6g59ZV-9wIygec=/300x225/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/15/mm-59.jpg)
Depois, passou para Feira da Sete, na Cidade Baixa, e montou uma barraca de comidas com ajuda de um freguês em um mercado popular em frente à feira de Água de Meninos, atual feira de São Joaquim. Esse seria o primeiro restaurante de comidas típicas da Bahia em Salvador.
Já em 1942, Maria de São Pedro, com auxílio do mesmo freguês, abriu o estabelecimento no antigo Mercado Modelo e, após o incêndio de 1969, passou a ocupar a parte superior da casa de alfândega. A culinária da baiana de Santo Amaro foi provada por personalidades nacionais e internacionais como Dorival Caymmi, Jean Paul Sartre, Orson Welles, Pablo Neruda, Pierre Verger e Jorge Amado, que ainda dedicou um poema em homenagem à baiana.
![Térreo do Mercado Modelo também possui diversas cantinas e lanchonetes, além da roda de capoeira (Foto: Egi Santana/ G1)](http://s2.glbimg.com/hyT_3_GzbFV_-zafix6rheYe9B0=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/15/mm-49.jpg)
Além dos restaurantes tradicionais, existem opções mais modestas e tão saborosas quanto o Maria de São Pedro e Camafeu de Oxóssi. As cantinas e lanchonetes que funcionam no térreo do Mercado Modelo são frequentadas diariamente por baianos e turistas. Com preços mais baratos e opções de pratos comerciais, executivos e também com muito dendê, não há como deixar de provar a culinária oferecida em um dos locais mais charmosos e aconchegantes de Salvador.
Apesar da queixa de comerciantes a respeito da falta de infraestrutura e fiscalização do espaço, deixar de visitar um dos mais conhecidos patrimônios históricos de Salvador pode ser considerado o oitavo pecado capital. “O Mercado Modelo é um resumo da cultura da Bahia, da origem do Brasil, porque tudo começou na Bahia. Precisa um pouco mais de apoio, de visão cultural da própria gestão pública e do povo brasileiro em geral para valorizar”, defende o comerciante Nelson Tupiniquim. Já foi ao Mercado Modelo? Então, vá.
![Artista plástico desenha rosto de visitante do Mercado Modelo (Foto: Egi Santana/G1)](http://s2.glbimg.com/TFID78P1XyckfdxgOq4ry2Zlybs=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2016/01/15/mm-45.jpg)